Me deixe ter minhas paredes mal pintadas e minha decoração duvidosa. São marcas de uma pessoa quebrada tentando tomar as rédeas de sua vida, se apropriar finalmente de sua casa, torná-lo seu lar e seu refúgio e encontrar paz numa tormenta de mágoa e lembranças boas e ruins que se intercalam num pensamento incessante e inquieto.
Eu herdei o apartamento que moro dos meus pais há 6 anos, em 2019. Foi uma herança em vida, uma partilha antecipada de bens visando a garantia de segurança para todos e a falta de brigas futuras. Estávamos num momento decisório em que percebemos que minha mãe perdia a motilidade e subir e descer escadas se tornava perigoso. Com a saúde dela em mente e já antevendo que ela e meu pai precisarão de ajuda e cuidados na maturidade, decidimos nos mudar para aptos pequenos no mesmo condomínio, eu e eles, de forma que eu pudesse ter minha independência e privacidade e ainda assim estar próxima e disponível.
Nessa época eu estava casada e 2 semanas antes de nós mudarmos para o apto novo meu sogro faleceu. Foi repentino e doloroso e tornou o que era pra ser uma boa lembrança de uma conquista num momento de luto para toda a família.
Nos mudamos para o apartamento as pressas, sem pintar, sem fazer nenhuma modificação. Entramos do jeito que ele estava.
Aqui vivemos bons momentos, gravações, o começo de uma vida profissional que eu finalmente me permitia. Aqui vivemos a pandemia, uma nova relação, e o final denum casamento de 23 anos.
Depois de me separar em 2022 e ficar muito doente em 2023, veio um 2024 que começou com grandes coisas boas e terminou com uma depressão profunda, minha e da minha filha, um burnout, e muito mais.
E em 2024 eu comecei a entender, finalmente o apartamento como meu. Que eu o amo e que gosto de estar aqui. Tenho aprendido a apreciar minha própria companhia e sinto a necessidade de fazer com que esse lugar se torne meu lar realmente, e pra isso tenha a minha cara.
Eu não sou uma grande decoradora. Não ligo para combinações de cores, para detalhes e simetria. Não me importo com manchas nas paredes e desenhos, nem nada disso. Mas quero um lugar arrumado e organizado de forma a ser aconchegante e convidativo.
Eu comecei trocando minha geladeira, logo depois da separação e por quase 3 anos foi so isso. Depois foi a mesa de jantar, no fim do ano passado. Foi o primeiro móvel que montei na vida, com a ajuda de um amigo. Ela logo soltou uma perna e eu arrumei, mal e torta, com a ajuda da minha filha. Então eu tenho uma mesa torta, mas é minha, eu escolhi, comprei e montei. É minha e não tem lembranças ruins sobre ela.
Depois troquei o micro-ondas, que resolveu queimar e se mostrar impossível de ser arrumado.
Essa semana tive uma crise de hipomania e comprei um sofá. Um sofá que é do jeito que eu queria é estava procurando a meses, enrolando, procurando o jeito certo e a melhor hora para substituir um grande sofá velho, quebrado e rasgado que eu tinha em casa. Um sofá de mais de 25 anos, cheio de histórias, mas que tinha vivido sua vida e estava precisando dar espaço para o novo.
Então comprei um sofá novo. Azul. Para minha sala com paredes de cor salmão. E com uma das paredes coberta de madeira. E minha mesa branca.
Mas eu não ligo para a decoração. Me deixe ter minha decoração duvidosa.
Mas resolvi pintar as paredes de branco. Pintei uma delas hoje. Está manchada e eu esqueci de tirar o pó da parede antes de passar a tinta. Não importa. O que importa é o que tudo isso significa.
Eu provavelmente vou ter que repintar tudo em poucos meses para realmente ficar bom.
Não importa.
O que importa é o que significa pra mim.
É minha casa e meu apartamento e meu lar. E eu preciso que tenha a minha cara, meio torta, meio manchada, meio quebrada, com uma decoração estranha e duvidosa de quem não liga para o que pensam de sua aparência. Meu espaço e a minha cara.
Preciso entender quem eu sou e o espaço que eu ocupo. Então vou me permitir às paredes manchadas e a decoração duvidosa para me fazer feliz.